By | 3 janvier 2021

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Viviane Bastos e Silva [1]
École des Hautes Etudes en Sciences Sociales
UMR 8097 Centre Maurice Halbwachs

Resumo: O presente trabalho visa investigar o processo de banimento cultural e simbólico que o Estado pode promover, apagando a história, a potência e a riqueza das produções artísticas de um grupo. Analisando o tratamento legal e institucional dado às favelas do Rio de Janeiro ao longo do tempo é possível perceber como o Estado criou e reforçou representações estigmatizantes dessa população e de seu modo de vida. Muito embora as favelas existam há mais de 120 anos, essas comunidades ainda são tratadas como precárias do ponto de vista material, temporal, jurídico e cultural. As favelas são apagadas dos mapas turísticos e até mesmo de documentos técnicos, as placas de sinalização da cidade silenciam sua existência. Essa negação também se dá no campo na arquitetura e da paisagem urbana. Mais do que o desvio de um sistema, a discriminação dos sujeitos de direito é práxis, uma ferramenta que fornece justificativas para a transcendência das antigas categorias de sujeitos.
Palavras-chave: Favela, memória, cultura, direito, estigma, representação espacial, Brasil, séculos XX-XXI.

Titre : Les favelas comme atteinte à l’esthétique : mécanismes étatiques de dévalorisation de la culture et de la mémoire à Rio de Janeiro
Résumé : Ce travail étudie le processus de bannissement culturel et symbolique que l’État peut promouvoir en effaçant l’histoire, la puissance et la richesse des productions artistiques d’un groupe. À travers une analyse du traitement juridique et institutionnel réservé aux favelas de Rio de Janeiro au fil du temps, il est possible de saisir comment l’État a créé et a renforcé les représentations stigmatisantes de ces populations et de leur mode de vie. Bien que les favelas existent depuis plus de 120 ans, ces communautés sont toujours considérées comme précaires d’un point de vue matériel, temporel, juridique et culturel. Les favelas sont effacées des cartes touristiques et des documents techniques ; les panneaux de signalisation de la ville cachent même leur existence. Cette dénégation se retrouve dans les domaines de l’architecture et du paysage urbain. Davantage qu’une déviance du système, la discrimination des sujets de droit est une praxis, un outil visant à légitimer un processus de transcendance des anciennes catégories de sujets.
Mots-clés : Bidonville, mémoire, culture, droit, stigmatisation, représentation spatiale, Brésil, XXe-XXIe siècles.

Title: Favelas as Aesthetic Damage: State Mechanisms to Devalue Culture and Memory in Rio de Janeiro
Summary:
This work aims at investigating the process of cultural and symbolic banishment that the state promotes, erasing the history, power and wealth of artistic productions of a group. By analysing the legal and institutional treatment given to the favelas of Rio de Janeiro over the time it is possible to see how the state has created and reinforced stigmatizing representations of this population and its way of life. Although the favelas have existed for over 120 years, these communities are still treated as precarious from a material, temporal, legal and cultural point of view. Favelas are erased from tourist maps and even from technical documents, the city’s signs silence their existence. This denial also occurs in the field of architecture and urban landscaping. More than the deviation of a system, the discrimination of law subjects is praxis, a tool that provides justifications for the transcendence of the old categories of subjects.
Keywords: Favela, memory, culture, law, stigma, spatial representation, Brazil, 20th-21st centuries.

Pour citer cet article – To cite this article : Bastos e Silva, Viviane, 2021, « Favelas como dano estético: mecanismos estatais de desvalorização de cultura e de memória no Rio de Janeiro», coord. par Catherine Berthet Cahuzac, Cahiers d’études des cultures ibériques et latino-américaines, no 7, <https://cecil-univ.eu/C7_7>, mis en ligne le 18/12/2020, consulté le jj/mm/aaaa, DOI : https://doi.org/10.21409/c7_7.

 

Reçu – Received :                      05.09.2020
Accepté – Accepted :               16.10.2020

 

Introdução

    1. A cidade do Rio de Janeiro, fundada em 1565, foi a capital política do Brasil de 1763 a 1960[2] e continua sendo um importante polo cultural e financeiro do país. No réveillon de 2020, o marco de 1,7 milhões de turistas foi alcançado e o carnaval trouxe 2,1 milhões de visitantes[3], segundo a Empresa de Turismo do município do Rio de Janeiro (Riotur). Durante esse período, de janeiro a fevereiro de 2020, o município registrou 474 tiroteios e as favelas figuram entre os bairros com maiores incidentes desse tipo[4]. Dentre os dez bairros com mais incidentes, foram computados 65 tiroteios em Vila Kennedy, 41 na Cidade de Deus, 21 no Complexo do Alemão, 17 em Bangu, 16 na Tijuca, 12 em Madureira, 12 em Vila Isabel, 12 em Acari, 12 no Complexo da Maré, 11 em Realengo. Nesses dois meses, o Instituto Fogo Cruzado contou ainda 8 chacinas na cidade[5].
    2. A questão a ser evidenciada, por mais óbvia que pareça, é que os lugares onde ocorrem as chacinas e os territórios frequentados pelos turistas não costumam ser os mesmos. Entretanto, o Rio de Janeiro tem a característica interessante de ter favelas em regiões centrais da cidade, algumas em bairros nobres como Copacabana, Botafogo, Leme. O fato de algumas delas estarem nos morros dificulta a empreitada do Estado de escondê-las, por mais que os mapas e as placas insistam em dissimulá-las[6]. Depois da divulgação do mapa de turismo de 2017, no qual as favelas eram representadas como florestas, o mapa de 2019 da RioTur utiliza uma cor diferenciada para representar algumas das favelas da Zona Sul e recorta a área de modo que a Rocinha (uma favela) não seja visível.

Figura 1. Mapa RioTur 2019 (disponível em <http://visit.rio/>).

  1. Mas de onde e de quando vem essa irrelevância imputada a territórios que abrigam, atualmente, quase um quarto da população do município[7]? Bem, essa suposta irrelevância foi construída por políticas públicas desde o surgimento das favelas e a legislação teve um papel importante nesse processo, conforme será visto adiante. A metodologia utilizada foi a análise de quatro entrevistas semiabertas realizadas no ano de 2018, além da pesquisa em jornais na Hemeroteca Digital Brasileira do período conhecido como Primeira República (1889-1930) – que corresponde ao período de surgimento material e simbólico das favelas. Diversos autores trataram sobre o tema do urbanismo e do direito à cidade do ponto de vista global e como modelo geral – por exemplo, David Harvey e Henri Lefebvre –, mas o intuito desse artigo não é de discutir essas teorias ou os impactos específicos dos Mega eventos nas favelas, pois são temas amplamente trabalhados nos últimos anos. A proposta do artigo é mostrar como o passado se repete, através de um apanhado de fatos históricos, mas também de fatos do cotidiano e de documentos institucionais. Foi priorizada uma bibliografia local que reflete outras perspectivas de uma temática amplamente discutida.

1. A construção da favela

«As favelas são resultado desse direito mal feito da abolição.»
Moradora da Vila Kennedy

  1. Diversos trabalhos já exploraram as origens das favelas[8], atribuindo o seu surgimento ao retorno de soldados da Guerra de Canudos, aliado ao contexto da recente abolição da escravidão. Mesmo que a utilização do termo favela, de modo a designar uma tipologia de território, seja atribuída à ocupação no Morro da Favella (atual Morro da Providência), fundada entre 1893-1894, há registros anteriores de ocupações nos morros da região, como no Morro Santo Antônio[9]. Estima-se que é na década de 20 que a nomenclatura passe a se expandir e categorizar esses espaços.
  2. O surgimento da favela no campo jurídico destina-se a estabelecer sua ilegalidade. Conforme trabalhado por Rafael Gonçalves[10], o artigo 349o do Código de Obras de 1937 introduz e generaliza o conceito de favelas, colocando-as também na precariedade legal – o que se torna um ponto nodal na sua definição jurídica até aos dias de hoje. Dentre os critérios elencados pela prefeitura do Rio de Janeiro para a definição de uma favela, pelo menos três se relacionam com a ilegalidade – a falta de regularização fundiária, a ausência de regularização urbanística e a irregularidade fiscal –, os outros critérios enunciam a precariedade estrutural e econômica[11]. Mesmo que haja documentação que demonstre que essa ocupação também se fazia de maneira legal – pelo aluguel do terreno e pela autorização do Estado. O trabalho desenvolvido por Abreu e Vaz demonstra essa cronologia e a concessão estatal que permeou a constituição desses territórios, sobretudo para as primeiras favelas – Santo Antônio e Providência[12].
  3. Esses mecanismos de enquadramento das favelas na ilegalidade e em seus diversos sinônimos (irregularidade, informalidade) facilitam, por exemplo, políticas de remoções. São comuns os casos de notificações pela prefeitura impondo a desocupação em áreas de favelas em prazos extremamente variáveis – de 24 horas a 30 dias ou até mesmo a destruição dos bens sem aviso ao proprietário. Em um caso recente, em maio de 2020, através de uma notificação que possuía o endereço incorreto, foi ordenada a desocupação do camelódromo da Rocinha em 24 horas. A justificativa era o embaraço das vias de acesso para ambulâncias ao «Centro municipal de diagnóstico por imagem[13]», onde seria instalado um tomógrafo – equipamento importante para o enfrentamento da COVID-19. A questão é que o dito Centro seria construído, através de um comodato, no estacionamento de uma Igreja Universal – instituição na qual o prefeito Crivella é membro ativo (bispo) e que foi fundada pelo seu tio, Edir Macedo. Na ocasião, o Secretário Municipal da Infraestrutura, Habitação e Conservação defendeu a medida pois existiam «preocupações constantes com questões de segurança na comunidade, visto que comandos paralelos ainda decidem como se comportam moradores, comércio, transporte local e muitas das atividades do cotidiano da população que nela residem[14]». A decisão da instalação no tomógrafo no estacionamento da igreja foi mantida pelo Judiciário:

Alega impossibilidade de instalação do tomógrafo na UPA da Rocinha, na quadra da escola de samba ou no centro esportivo devido à dificuldade de acesso de veículos, ao peso do equipamento e à necessidade de adequação da rede elétrica, além de resultar na interrupção dos atendimentos, no caso da UPA. […] Não cabe ao Poder Judiciário adentrar o mérito das decisões administrativas, mormente no atual momento vivenciado pelo país, não podendo substituir prévias avaliações técnicas do Poder Executivo, gestor da coisa pública, por julgamentos judiciais assentes em cognição absolutamente sumária e superficial[15].

  1. A premissa de ilegalidade das favelas, muitas vezes ultrapassa os fatos jurídicos em questão. O caso da Vila Autódromo ilustra como esse discurso foi mobilizado no contexto da política de remoções realizada por Eduardo Paes entre 2009 e 2013, onde mais de 65 mil foram removidos[16]. A ocupação começou por volta de 1962, mas em 1989, o governo do Estado, proprietário do terreno onde se situa a Vila Autódromo, alocou famílias oriundas da favela Cardoso Fontes e em 1994, assentou mais 60 famílias na região. No final da década de 1990, se deu início a um processo de regularização fundiária da área (processo E-28/001057/93). Em 1997, foram concedidos os Termos Administrativos de Concessão de Uso, por 99 anos, a 104 famílias da área central e um ano depois, a concessão de uso abarcou os moradores da faixa marginal da Lagoa[17]. Em razão da localização da favela, em crescente valorização imobiliária, várias foram as tentativas de expulsarem os moradores, sob as mais diversas alegações – desde dano estético à construção em área de risco.

Em 1993, alegando «dano estético e ambiental», em ação judicial ajuizada no Tribunal do Rio de Janeiro pelo então procurador do município Eduardo Paes, a Prefeitura requereu a retirada total da comunidade. Nesse período, a Vila Autódromo articulou sua defesa jurídica e impediu a remoção, demonstrando a fragilidade dos argumentos municipais[18].

  1. Resistindo aos planos municipais de redução de até 5% de áreas de favelas na cidade – com incentivos e bônus salariais a funcionários que cumprissem metas[19] – os moradores dessa favela que foram removidos conseguiram indenizações mais justas e 20 famílias, das 580 do início do ano 2013, continuaram a morar na favela[20]. Ora, não é a irregularidade fundiária que ameaça as favelas, mas o discurso de precariedade jurídica que pode ir de encontro a direitos adquiridos, sem que ganhem essa nomenclatura. Diversas outras favelas são fruto de assentamentos promovidos pelo próprio Estado, não são poucas aquelas que possuem proprietários reconhecidos legalmente. É importante analisar como e por que o direito se circunscreve de maneira a oferecer uma oponibilidade reduzida nesses territórios.
  2. O discurso de precariedade jurídica das favelas é legal, político e social. Aliás, esses três elementos estão profundamente imbricados, visto que o direito é uma forma de regulação social, amoldado segundo diretrizes e embates políticos. Ainda que pareça pleonasmo afirmar que existe uma precariedade jurídica que é legal, a intenção é evidenciar como os aparatos legais (leis, circulares, planos diretores urbanos) e as interpretações do direito (nas mais diferentes instâncias) são capazes de construir um instituto jurídico que modeliza a precariedade das favelas.
  3. Desde a aplicação do direito pelo policial até à decisão de um desembargador, percebe-se que há uma doutrina baseada na premissa da ilegalidade das favelas que vai gerar uma jurisprudência sobre o assunto. Trazer as favelas para o campo legal normalmente significa estabelecer a ilegalidade desses ou nesses territórios. Isto é, estar em alguma medida em desacordo com a lei é, paradoxalmente, a forma pela qual as favelas integram o campo semântico legal. A integração legal das favelas se faz pela via de exceção, ressaltadas as especificidades que habilitaram um território em particular a gozar desse status. Logo se estabelece um regime de micro-legalidades ou quase-legalidades que permite o manejo jurídico diferenciado desses espaços e de sua população.
  4. Segundo os dados de 2019, a cidade do Rio de Janeiro conta com 1 018 favelas[21]: 156 favelas urbanizadas, 6 favelas em processo de urbanização, 112 favelas parcialmente urbanizadas, 736 favelas não urbanizadas e 8 favelas parcialmente reassentadas[22]. As políticas públicas são um fator determinante na tipologia e estruturação legal dos territórios – incentivando e facilitando sua regularização, promovendo adaptações necessárias à legislação para uma integração jurídica definitiva e profunda.
  5. A dimensão social também influencia a precarização jurídica das favelas na medida que legitima as ações do Estado, reforça sua estigmatização e valida esse sistema restritivo de direitos em função do território. Essa visão dualista da cidade (favela e asfalto) e das normatividades da favela (lei do tráfico e direito) são modelos explicativos extremamente redutores, que buscam macular o comportamento dos seus moradores (coniventes com o crime, resistentes à ordem). A Secretaria de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (SEPOL) fez a seguinte afirmação, em resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que proibiu operações policiais em favelas sem justificativas[23] durante o período da pandemia da COVID-19:

As favelas, em sua grande maioria, são localizadas em área urbana, próximas a residências, escolas, hospitais, empresas, comércios, delegacias de polícia e batalhões da polícia militar. Levantamento da Subsecretaria de Inteligência (SSINTE) mapeou 1 413 favelas com atuação do crime organizado[24].

  1. Segundo a colocação da SEPOL os tiroteios e mortes nas favelas atrapalham o desenrolar da vida do restante da cidade, já que as favelas são localizadas próximas a residências, escolas, hospitais (vulneráveis), empresas, comércios (economia), delegacias de polícia e batalhões da polícia militar (ordem). Para esta instituição não é evidente que existam residências e escolas dentro das favelas, ao que parece, as referidas residências próximas que estariam em perigo pela falta de intervenção da polícia são aquelas que não são ocupadas por favelados. Apenas em abril de 2020, a polícia matou 177 pessoas no estado do Rio de Janeiro, muitas dessas vítimas em favelas[25]. O documento continua a narrar a visão da polícia sobre esses territórios.

Ditas regiões [favelas da Capital] se tornaram verdadeiros bunkers das facções criminosas, o que ocasionou a instalação de barricadas, expulsão de moradores de suas residências e disputa territorial entre quadrilhas rivais. […] Qualquer tentativa de restringir ou limitar a atuação das policiais, seja por meio de decisões judiciais e/ou projetos de lei, incidirá nos mesmos erros acima apontados e na criação de uma «zona de proteção» para as organizações criminosas de narcotraficantes e de milicianos, o que redundará, em poucos meses, no aumento recorde dos indicadores de criminalidade[26].

  1. Aliás, o termo «bunkers de bandidos» foi utilizado, em agosto de 2020, pela TV Globo para se referir ao Complexo da Maré[27]. As alegações hiperbólicas e o vocabulário depreciativo para fazer alusão às favelas não é um método novo de estigmatização. O jornal Correio da Manhã já o fazia em 1909 ao relatar o que era uma favela.

É o lugar onde reside a maior parte dos valentes da nossa terra, e que, exatamente por isso – por ser o esconderijo da gente disposta a matar, por qualquer motivo, ou, até mesmo, sem motivo algum –, não tem o menor respeito ao Código Penal nem à Polícia, que também, honra lhe seja feita, não vai lá, senão nos grandes dias do endemoninhado vilarejo. A Favela […] é a aldeia do mal. Enfim, e por isso, por lhe parecer que essa gente não tem deveres nem direitos em face da lei, a polícia não cogita de vigilância sobre ela[28].

  1. Em entrevista com um morador da Maré[29], fica perceptível como uma pessoa vive e sente a integração com a cidade, como esta hierarquização de cidadanias e de territórios influencia seu cotidiano.

Pobre, preto na Zona Sul, no Leblon pra ser mais exato, você vira um alvo vivo. […] Eu tive que pegar o BRT[30] para ir para Barra, sendo que eu desci na estação errada, uma estação antes. Cara, imagina o Alberto[31] sábado à tarde, tentando conseguir uma informação – porque nem meu celular pegava naquela bexiga. Isso é absurdo porque as pessoas não paravam para me dar uma informação. Eu tive que entrar dentro de uma farmácia, comprar uma barra de cereal e uma garrafa d’água pra ter uma informação. Então o direito de ir e vir, assim, ele é garantido, eu vou para qualquer lugar que eu quero, independente, se está dando tiro ou não, infelizmente eu já estou acostumado com a situação, eu saio. A questão é: eu evito estar em locais como o Leblon, Barra da Tijuca, porque você sofre um preconceito. Eu como negro sofro um racismo claro. A pessoa que é branquinha, mas que mora na favela […] que descobrirem que ela é da favela, ela vai sentir um racismo diferente, uma xenofobia e isso acontece com todo mundo, infelizmente[32].

  1. A experiência de uma moradora da Vila Kennedy expõe as políticas públicas oficiais e oficiosas nas favelas:

A Vila Kennedy é uma favela super regularizada […] originalmente a favela nasceu de um projeto planejado e meus pais têm os documentos da casa, eles pagaram por isso. Minha mãe foi removida da favela onde hoje em dia é a UERJ[33] e meu pai foi removido da Rocinha. E os dois foram parar lá, sabe? […] E a UPP[34] chegou, operando como o Estado opera nas favelas, que é com muita violência e repressão e aí a galera ficou com raiva, assim… «Pô, sempre fiz esse baile aqui e a UPP quer impedir?». Esse baile tem 20 anos e a UPP, que nem sabe de nada, quer impedir que o baile aconteça, quer moralizar as coisas, quer tirar o som da praça, enfim, acho que a galera ficou meio chateada. […] Quando começou a se estabilizar e quando os conflitos acabaram e a UPP começou a fazer esse trabalho mais de ser o Estado, né? De moralizar as coisas, acho que a galera ficou bastante chateada. O que eu ouço das pessoas que eu converso andando por lá é que tipo «Depois que a UPP chegou não pode fazer mais festa até tarde, não pode mais ter baile». Tinha uma feira lá, super tradicional, que acontecia e que não pode mais acontecer, desde que a UPP chegou. Então, assim, esses dois ambientes: a galera que gosta porque está menos violento e a galera que não gosta porque as oportunidades de lazer ficaram muito limitadas com a UPP[35].

  1. Na primeira parte do artigo foram demonstrados alguns elementos da construção social, legal e política do estigma das favelas. A favela é retratada, desde sua fundação, como um lugar de crime, com uma população que carece de moral, que possui regras próprias em dissonância com o direito. Essas premissas são perceptíveis no imaginário social de pessoas que nunca foram em uma favela, mas também daquelas que frequentam esses territórios habitualmente, mas interpretam as dinâmicas sociais de um modo pejorativo.
  2. A representação desse território passa por diferentes tipos de depreciação que se superpõem. Numa sociedade extremamente marcada pela distinção entre sujeitos de direito, a favela albergava sujeitos dos níveis mais baixos dessa hierarquia social: pobres, negros, ex-escravos, capoeiristas, sambistas, vagabundos, migrantes. Portanto, a discriminação que pesa sobre a favela começa em função da categoria de sujeitos de direito que ali habitavam. Posteriormente, a discriminação contra o território começa se tornar relativamente autônoma, ou seja, mesmo um indivíduo pertencente às categorias menos reprimidas sofre um achatamento de direitos por seu pertencimento (suposto ou real) ao lugar. O impacto dessas representações e da precariedade jurídica no reconhecimento da memória e da cultura das favelas será tema analisado no próximo tópico.

2. Rememorando

«Perigoso? Não é perigoso, lá [favela] eu me sinto ótima!»
Moradora da Vila Kennedy

Que sorte!
Uma noite de peripécias
E um homem atrapalhado
José da Cruz, um homem pacato e trabalhador, encontrou-se anteontem, à tarde, com um seu amigo, no morro da Favella. Convidado para um jantar, Cruz acquiesceu e em companhia do convidante foi para o hotel. Ambos comiam com satisfação quando se originou uma questão. O amigo de Cruz, não se contendo, sacou uma faca e investiu contra elle. O pavor de Cruz foi enorme e por isso resolveu fugir. Na fuga foi elle perseguido por seu amigo, que de faca em punho, ameaçava céos e terras. Cruz correu muito e chegando a um precipício, num instante vacilou; ou morrer esfaqueado ou então fechar os olhos e jogar-se à sorte. Esta hypothese foi preferida. Cruz preferindo morrer pelo suicídio jogou-se no abismo. Mas foi feliz. Rolou, rolou muito e no fim ficou agarrado a uma saliência que existe numa das ribanceiras do morro da Favella. Agarrado pelo paletot ficou o pobre Cruz uma noite inteira, até que pela manhã alguns populares, vendo a situação crítica do equilibrista, preveniram a polícia do 8o Districto. Esta por sua vez pediu auxílio ao Corpo de Bombeiros que, comparecendo ao local, retirou o Cruz na posição em que se achava. A polícia do 8o Districto abriu inquérito e anda no encalço do homem que fez Cruz ser artista […] por uma noite[36] […]

  1. A memória social e institucional sobre a favela está fundada sob dogmas opressores aos quais a população fundadora desses lugares estava submetida. O espaço é uma produção relacional que reflete práticas sociais que, na maior parte dos casos, transbordam as práticas locais. O cadastro sistematizado tardio das favelas (implementado a partir da década de 80 pelo IPLAN-RIO) e a falta de documentação sobre sua cartografia foram algumas das consequências da ficção jurídica da precariedade. Os mapas antigos da cidade, mesmo fotos aéreas, apagavam as favelas: a realidade recortada dos registros oficiais[37]. Essa desconstrução da favela se faz pelo soterramento das memórias desses lugares e relevo das favelas como territórios homogêneos – loci da miséria, da violência e do caos. As ilustrações mudaram de figura, mas o teor da favela como inimigo do Estado continua o mesmo – lugar de negócios clandestinos, repleto de vagabundos (na República nova), de comunistas (durante a ditadura militar), de tráfico de drogas (atualmente). Uma matéria de 1930 do Jornal do Brasil que alertava sobre os riscos do alcoolismo, citava uma favela como corresponsável dessa situação.

Uma campanha benemérita
Na Favela do morro de São Carlos e na zona do baixo meretrício, como se não bastassem os tenebrosos aspectos da miséria que naturalmente apresentam, existem innumeros estabelecimentos clandestinos que fazem avultados negócios vendendo cachaça e outras bebidas falsificadas, que arrastam os escravos do nefasto vício, os que perderam integralmente a energia e a força de vontade, para a senda do crime[38].

  1. A favela também foi tema de peças já no começo do século XX. Em 1916 foi inaugurada uma peça no Teatro São José que se chamava «Morro da Favella»[39], em 1925 a peça «Fla-Flu»[40] também retratava a vida de moradores do Morro da Favela, com personagens que faziam menção do retorno de soldados da Guerra Canudos e a origem da ocupação. Maria Aguiar salienta que a comemoração da festa da Penha pela favela é retratada nessa revista.

A farra vai ser grande! O pessoal da Favela está ensarilhado com a festa da Penha […] O caminhão, todo enfeitado, ficou, lá, em baixo, esperando por vocês… (indo à porta da venda) Ó seu Manoel, sirva bebida a esse pessoal! Quem paga sou eu![41]

    1. A autora aponta como os jornais da época comentavam essas celebrações: «Em um canto se formavam os cordões terríveis, ameaçadores, selvagens. Em outro canto reuniam-se os sambas, não menos terríveis e muito mais selvagens[42]». Outra peça de 1929, citada por Mariana Aguiar, é «Seu Julinho Vem!» cujo enredo discutia as políticas remoções da época, o personagem Vagabundo, categorizado como malandro, resistia a proposta de urbanização do Morro da Favela[43]. Essas produções conversam com o movimento cultural modernista no Brasil, que a partir de 1922, procura introjetar como elementos de identidade nacional a figura dos negros, dos sambistas, dos malandros e dos favelados. É também nesse contexto, em 1924, que a artista Tarsila do Amaral produziu um quadro que retratava as favelas e sua população.

Figura 2. Tarsila do Amaral, Morro da Favela, 1924 (imagem disponível em <http://tarsiladoamaral.com.br/obras/>).

  1. Ao longo dos anos, as favelas continuaram a ser retratadas em filmes, novelas, livros, porém a maior parte dos trabalhos que ganharam amplitude não é fruto de autorrepresentações e, não raro, essas obras estão permeadas de estigmas. As memórias e o relato dessas pessoas continuam a passar por outras vozes para serem ouvidas. Alguns casos mostram a força dessas narrativas, que conseguem romper a hegemonia cultural. O livro de 1960, Quarto de despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, que era catadora de papel, vendeu 90 mil cópias no Brasil e foi traduzido em pelo menos treze línguas[44]. A escritora contemporânea, Conceição Evaristo, mulher negra que também foi moradora de favela, teve seus livros traduzidos para o francês, inclusive o título Favela. Mas elas são exceções.
  2. Em uma análise sobre 25 filmes feitos a partir dos anos 2000 sobre favelas, Tiago Moreira mostra a expansão significativa dessa temática no cinema brasileiro. A popularidade e repetição do cenário levou a criação de um subgênero conhecido como favela movies. Como lembra o autor, outros filmes já retratavam as favelas como Rio 40 graus (1955), Cinco vezes favela (1962), Megalópolis (1973), Rio Babilônia (1982), Como nascem os anjos (1996). Dentre os filmes produzidos entre 2001 e 2011, apenas três foram feitos por moradores de favelas, o que explicita a dificuldade dos favelados de transmitirem suas narrativas e sua cultura como integrantes da cultura nacional[45].
  3. A experiência de mostrar sua própria realidade pode trazer uma pressão social e ameaças por partes de agentes do Estado. No livro Cabeça de Porco o rapper MV Bill relata os obstáculos que enfrentou ao divulgar uma parte do seu trabalho sobre pessoas que trabalhavam no tráfico de drogas.

Então ele me perguntou se eu estava arrependido do trabalho que fizemos. Eu disse que não e nunca tive dúvidas disso. O único problema mesmo era convencer as pessoas que podemos fazer essas críticas da mesma forma que qualquer crítico pode fazer sobre o assunto que escolher. Celso foi embora e eu fiquei lá, esperando a lei vir me buscar e pensando durante toda a noite em tudo que eu passei nas filmagens e nas pessoas com as quais filmamos e falamos. No fundo, as pessoas que desejavam me ver preso não poderiam entender mesmo nada daquilo; afinal, elas pensam que são diferentes daquela gente. A ideia do filme era somente humanizar os jovens que sobrevivem da droga, fazer o país refletir sob o ponto de vista deles próprios, sem a interferência de um antropólogo ou de um rapper, de ninguém. Era a chance de mostrar aquela realidade sem um preconceito. Era uma espécie de olho no olho. Mas nunca achei que seria fácil dialogar com a parte solidária e amável da sociedade, com as pessoas que querem um mundo feliz, sem armas, sem drogas e sem violência. Eu sempre soube que essas pessoas que querem viver no paraíso seriam as pessoas que mandariam me prender caso entendessem que essa pesquisa em forma de imagem fosse ofender os bons costumes da sociedade pura. De toda forma, a polícia continuava a perseguição, a busca das imagens do soldado do morro[46].

  1. Esse trecho mostra diversos aspectos importantes na produção de cultura nas favelas. Primeiramente mostra a relação tecida com a polícia, a violência conhecida na abordagem, na invasão do domicílio, na aquisição ilegal de provas. Em segundo lugar, a necessidade de autorrepresentação que se confronta com a falta de legitimidade que esses moradores vivenciam, sem que tenham o direito de expressar suas críticas respeitado pelo Estado. Por fim, ressalta a uso de aparatos legais para impedir a produção e divulgação desse tipo de material.
  2. Em entrevista, uma moradora da Vila Kennedy contou que só teve consciência do risco imputado à favela quando começou a frequentar uma universidade na Zona Sul. Seus colegas perguntavam como ela conseguia viver cercada de tanto perigo, sua resposta foi a frase já citada: «Perigoso? Não é perigoso, lá eu me sinto ótima!». Ela comentou sobre a conexão entre sua identidade e o território, sobre as críticas que recebia pela sua forma de comunicação – considerada agressiva em outros ambientes, fora da favela. O vocabulário, a entonação da voz, as roupas, os lazeres dessas pessoas passam por uma desvalorização e descrédito. Os bailes funk são duramente reprimidos pela polícia, sob a justificativa de que são financiados por traficantes de drogas, fazem apologia ao tráfico, estimulam venda de drogas e pedofilia. Essas festas são frequentemente veiculadas pela mídia mostrando a presença de criminosos e de armas. Todavia, mesmo quando a polícia consegue ter um domínio efetivo sobre o território, a prática mais comum é de proibir os bailes e não de regularizá-los. Trata-se de uma disputa por autoridade que vai além do controle da violência e do bem-estar dos moradores. A reflexão que Portelli traz é fundamental para a transformação desse panorama.

A mudança que buscamos é uma mudança que dê mais poder aos sem-poder. E que lhes dê mais poder para que a sua cultura seja reconhecida como cultura. Para que se reconheça que não há somente uma cultura, a das elites, somente uma maneira de fazer cultura e que seja essa a maneira; que existe uma pluralidade de culturas, de níveis culturais, e que há uma luta de classes na cultura, na arena cultural – uma luta de classes não menos importante do que a luta de classes que existe no nível econômico, ou político, porque a luta de classes na cultura é a base do reconhecimento dos sujeitos que têm direitos, que têm saberes, que têm uma identidade. É, então, o início de uma mudança de relações de poder[47].

    1. Há uma disputa pela memória das favelas e o reconhecimento dessas identidades sem estigmas ou sanções. A partir dos anos 2000, diversos museus foram organizados pelos moradores[48]. Eles foram construídos por lideranças locais, que vêm sua história e memória como peças importantes para a resistência – inclusive resistência contra as remoções. São exemplos o Museu da Maré (2006)[49], o Museu de Favela[50] (2008), o Museu Sankofa[51] (2003), o Museu do Horto (2010) e o Museu das remoções (2016)[52]. Alguns deles são virtuais, visto a falta de condições materiais de construir e manter esses espaços. O slogan usado pelo Museu das remoções, «memória não se remove», mostra a dimensão de combate que esse movimento possui. Na apresentação do museu fica clara essa estratégia: «1) preservar a memória destas pessoas removidas, assim como suas histórias; e 2) servir como instrumento de luta, não apenas por nós, mas por todos que passem pela ameaça de remoção, compreendendo que a memória é o maior instrumento nesta luta de resistência[53]». Outro projeto interessante é o «Memória Rocinha[54]», uma colaboração entre o Instituto Moreira Salles e o Museu Sankofa, que desenvolve mapas colaborativos com as narrativas, fotos e vídeos dos moradores. Através dessa ferramenta, que é aberta à participação dos usuários, é possível conhecer a origem dos nomes dos lugares, ver fotos antigas da favela.

Figura 3. Website Memória Rocinha, 2020.

  1. O Programa Rio+Social surge a partir do ano de 2008, concomitante à política de implementação de unidades de polícia de proximidade em favelas (UPP). Algumas dessas favelas foram pela primeira vez mapeadas e tiveram as condições de mobilidade, saneamento, endereçamento profundamente analisadas. Entretanto, é marcante o fato de que a presença da polícia inaugure a reconstrução da existência, para o Estado, de um território – com produção de dados, reconhecimento de endereços, pesquisas de opinião e, em certa medida, reconhecimento do passado. Nesses documentos, as origens da favela eram rapidamente apresentadas, os problemas infra-estruturais eram demonstrados e as propostas de mudanças eram sugeridas[55]. O passado era uma introdução para situar uma transformação necessária[56].
  2. A sistematização das informações sobre as favelas começa no ano de 1990 com o Sistema de Assentamentos de Baixa Renda (SABREN)[57]. Com essa ferramenta é possível acessar os dados disponíveis sobre a favela, como quantidade de domicílios, nível de urbanização, imagens da área de ocupação por ano, histórico da ocupação. Como exemplo, segue os dados de uma favela na zona norte da cidade:

Nome: Indiana
Código da Favela: 67                               Data Cadastramento: 28/04/1981
Situação: Isolada
Acesso Principal: AVN MARACANA                                Bairro: TIJUCA
RA: VIII- TIJUCA                  RP: 2.2- Tijuca  AP: AP2
Porte: entre 101 e 500 domicílios
Grau de Urbanização: Assentamento não urbanizado
Histórico
1o Registro de ocupação 1965
A ocupação da área aconteceu primeiramente por duas senhoras que haviam sido transferidas de um outro terreno localizado entre a avenida Maracanã e a rua Paul Undemberg. Posteriormente, outras pessoas oriundas da região Norte do país começaram a construir novas moradias, gerando o adensamento da favela Indiana.
Fonte: Ano – Com base em depoimentos de moradores e líderes comunitários. Histórico – Com base em depoimentos de moradores e líderes comunitários[58].

Figura 4. Foto da Clarice, moradora da Favela Indiana, 2018.

  1. Expor que a fonte do histórico de um território são «depoimentos dos moradores» mostra o esforço de conhecer as origens da ocupação, mas explicita também a dificuldade de incorporar essas informações como oficiais e de estabelecer uma memória institucional baseadas nesses discursos, sem ressalvas ou distinções. Durante uma visita que fiz a esta favela, o líder comunitário, Marcelo, me mostrou os lugares que ele julgava importantes. Todos eles eram frutos de mobilização social, desde a creche, ao parquinho, ao lugar de coleta de lixo, a numeração das casas. Para os problemas de infraestruturas que eram apontados, havia sempre explicação sobre os órgãos administrativos que já tinham sido procurados, os trabalhos que tinham sido feitos e planos para conseguir as melhorias necessárias – reuniões com os funcionários estatais responsáveis, parceria com instituições. Na narrativa dele, os espaços comunitários e benefícios conseguidos eram imputados a pessoas: «Isso foi Fulano quem fez. Aqui foi a união de Cicrano com Beltrano que conseguiu com a prefeitura a liberação da verba». Andando pela favela, fui conhecendo os Fulanos e Cicranos, pessoas que conheciam a fundo os labirintos burocráticos e políticos do Estado, que possuem uma vasta experiência de luta e de conquistas por direitos. Graças a articulação dos moradores, inclusive do Marcelo que me fez conhecer o lugar, a favela vem resistindo às tentativas de remoções. Uma das fundadoras citadas no histórico do SABREN é a Clarice, que me mostrou uma faixa que ela colocou na entrada da sua casa.

Eu Clarice que descobri a comunidade Indiana já fui representante do governo presidente da associação a primeira moradora e assim permanesso [sic] a 53 anos e quero melhoria para minha comunidade já fiz muito pelos moradores minha casa já serviu hospital, posto de saúde e etc. Graças a Deus trabalhei com honestidade respeitando e compreendendo a todos os moradores. Ass[inado]: Mãezona[59].

Conclusão

  1. Ao invés de um dano estético ou um território de risco, as favelas deveriam ser percebidas pelo Estado como uma paisagem carioca e um importante patrimônio cultural. A seletividade da lei, sobretudo na sua aplicação, contribui para a desvalorização da favela – em seu território, sua população e a produção cultural que emerge. Segundo o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro, o conceito de paisagem é «a interação entre o ambiente natural e a cultura, expressa na configuração espacial resultante da relação entre elementos naturais, sociais e culturais, e nas marcas das ações, manifestações e formas de expressão humanas[60]». Já a Constituição de 1988 aduz que «constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira[61]». Portanto, não é a previsão legal que impõe obstáculos à proteção das favelas por esses institutos jurídicos (paisagem, patrimônio), nem a incapacidade dos favelados de adequação à lei que explica a ilegalidade. A ilegalidade é forçada e construída sob medida para esses territórios.
  2. A dinâmica social da favela é extremamente complexa e não cabe nos dualismos entre legal e fora da lei. A relação dos moradores com o tráfico pode variar em função da proximidade tecida pelo parentesco, amizade, apoio financeiro. O que o Secretário municipal chamou de «controle de comportamento da população» ou o que outros tantos chamam de conivência com os traficantes é uma conexão muito mais vascularizada – se trata de um amigo de infância, de um irmão, de alguém que pagou os remédios para um familiar em necessidade. Por certo há opressão, violência e medo, mas não é tudo.
  3. Obviamente nas favelas há diversas estruturas que não são adequadas à habitação e ao bem-estar dos seus residentes, mas isso não desqualifica a totalidade de imóveis e da urbanização erigida pela própria população. Sobretudo, não desqualifica o esforço dos moradores. O que a prefeitura vê como rio poluído, é apresentado ao visitante como «nosso rio», quem o Estado vê como invasores, são percebidos na comunidade como fundadores. As escolas que a polícia vê apenas fora da favela, são mostradas do lado de dentro por quem as idealizou e ajudou a construir. A maioria dessas biografias estão em textos acadêmicos, com uma projeção muito reduzida. Essas memórias se tornam objetos de estudo, uma história oral que é repassada dentro das favelas, mas que encontra enorme resistência em ser assimilada como história da cidade e do carioca. Daí a importância do Estado para validar memórias, defender patrimônios culturais e garantir igualdade na construção e interpretação do passado.

Referências citadas

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Notas

[1] Viviane Bastos e Silva é doutoranda em Sociologia do Direito pela EHESS, 54, Boulevard Raspail, 75006 Paris (França).

[2] Anteriormente a capital era a cidade Salvador (Nordeste) e em 1961 foi transferida para Brasília (Centro-oeste).

[3] Brito 2020; Gandra 2020.

[4] Fogo Cruzado 2020.

[5] É considerada chacina quando há mais de três pessoas mortas.

[6] Bastos e Silva 2020.

[7] Segundo o censo de 2010, cerca de 1,4 milhões de pessoas moram em favelas no Rio de Janeiro. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística 2010.

[8] Ver Valladares 2000.

[9] Esse morro na região central do Rio de Janeiro foi arrasado na década de 1950.

[10] Gonçalves 2013.

[11] Cavallieri 2009. Ver Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, Lei Complementar no 111 de 1o de fevereiro de 2011.

[12] Abreu & Vaz 1991, p. 489.

[13] Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Notificação F/SUBLFCU no 01/2020.

[14] Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Ofício SMIHC no 248/2020.

[15] Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), Processo 0096134-86.2020.8.19.0001.

[16] Faulhaber & Azevedo 2015.

[17] Vainer, Bienenstein, Tanaka et al. 2013.

[18] Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), Processo 93.001.078414-7.

[19] Caldas 2017, p. 135.

[20] Os moradores dizem que ainda não receberam o título de propriedade das casas, que havia sido prometido.

[21] É o Instituto Pereira Passos (IPP) quem tem competência para definir quais territórios são favelas.

[22] Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e Coordenação operacional gerência de macroplanejamento 2018.

[23] Supremo Tribunal Federal, Processo judicial, ADPF 635.

[24] Supremo Tribunal Federal, Petição 60595/2020, ADPF 635.

[25] AFP 2020.

[26] Supremo Tribunal Federal, Petição 60595/2020, ADPF 635.

[27] Rocha 2020.

[28] Correio da Manhã, 05/07/1909 (apud Mattos 2007, p. 146).

[29] No artigo são citadas quatro entrevistas, feitas em 2018.

[30] Transporte Rápido por Ônibus (Bus Rapid Transit).

[31] Manjarrés Trelles 2016.

[32] Entrevista com o morador da Maré, de setembro 2018.

[33] Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

[34] Unidade de Polícia Pacificadora.

[35] Entrevista com uma moradora da Vila Kennedy, de dezembro 2018.

[36] Jornal do Brasil 1916.

[37] Maia, Ferraz & Paes Leme 2018.

[38] Jornal do Brasil 1930.

[39] Aguiar inédita, p. 43.

[40] Ibidem, p. 119, n. 329.

[41] Ibidem, p. 120.

[42] Jornal do Comércio, 25/10/1920 (apud Soihet 1998, p. 34).

[43] Aguiar inédita, p. 84-85.

[44] Ver Reyes Arias 2011.

[45] Moreira 2011.

[46] Athayde, MV Bill & Soares 2005, p. 273-274.

[47] Portelli 2010, p. 8.

[48] Davies 2014.

[49] Museu da Maré, #MM14ANOS.

[50] Museu de Favela, MUF.

[51] Museu da Rocinha Sankofa, Memória e História.

[52] Museu das remoções.

[53] Ibidem.

[54] Instituto Moreira Salles & Museu Sankofa, Projeto – Memória Rocinha.

[55] Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Programa rio+social 05.4.8.

[56] No que tange ao trabalho com as favelas, o IPP faz um trabalho remarcável, porém, falta uma política pública geral mais comprometida, que faça investimentos suficientes para se conhecer melhor esses territórios.

[57] Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, Sistema de Assentamentos de Baixa Renda.

[58] Ibidem.

[59] Transcrição do texto exposto na figura 4.

[60] Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro, Lei Complementar no 111 de 1o de fevereiro de 2011, art. 2, § 3o.

[61] Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988, art. 216.